Fonte:http://revistaladoa.com.br/2016/06/conversa-com-pastor/entrevista-com-pastor-marvel-criador-primeira-biblia-inclusiva
Texto por: Cristoffer Zilotti
Algum tempo atrás, surgiu no Brasil, no ano de 2000, a primeira Igreja voltada ao público homoafetivo (igrejas Inclusivas), em São Paulo, que foi a Acalanto. Até então não existiam igrejas que acolhessem este rebanho LGBT de forma a aceita-los como são, sem promessa de cura ou libertação divina. Muitas igrejas dizem aceitar, no entanto impõem condições para esta aceitação. O que em muitos casos é a sugestão de se casarem para manter um relacionamento hétero-afetivo, alegando que ser homossexual é uma escolha.
Vemos a maioria dos religiosos pensar e dizer que a homossexualidade é uma questão de escolha pessoal, uma opção, onde uma pessoa escolhe por quem irá sentir desejos ou se apaixonar, dando ao homem total responsabilidade para determinar seus desejos sexuais. Usando a Bíblia para alegar que o padrão correto é ser heterossexual. Mas no país não existe até hoje uma bíblia que traga estudos aprofundados sobre esta questão. Vemos hoje no cenário religioso nos Estados Unidos que igrejas centenárias e tradicionais estão abrindo portas ao público LGBT e até aceitando e realizando casamentos de pessoas do mesmo sexo. Por aqui, no entanto, não é bem este cenário que vemos.
No Brasil está surgindo um projeto novo que por lá já existe, é o projeto do Pastor Marvel Souza da Comunidade Cristã Incluídos pela Graça, de Brasília, o pastor é o pioneiro e responsável pelo projeto da primeira “Bíblia Comentada Graça sobre Graça”, também chamada de “Bíblia de Todas as Cores”, "Bíblia Gay" ou "Bíblia homoafetiva" pela imprensa. Esta Bíblia traz comentários aprofundados sobre a inclusão eclesial dos homoafetivos, transexuais, bem como o combate ao racismo, o espaço das mulheres no cristianismo, a inclusão de pessoas com necessidades especiais, entre outros. No entanto, ele tem sofrido grandes perseguições e comentários maldosos dos evangélicos tradicionais que não aceitam a homossexualidade como algo bíblico.
Por isto, resolvemos escolher alguns dos pontos de atrito deste projeto inovador, para que o próprio autor nos explique melhor sua visão.
1. Pastor Marvel, antes de tudo, gostaria de conhecê-lo melhor, poderia contar um pouco sobre você?
- "Sou nascido no estado do Paraná, mais especificamente, em São Mateus do Sul. Sou fruto de uma família tradicional (família nuclear) e bem jovem já demonstrava meu interesse por religião. Ao mudar para o Distrito Federal, passei a frequentar uma igreja católica, onde fui batizado e fiz a primeira comunhão. O tempo que passei nessa igreja foi muito curto e de lá não tenho muitas lembranças. Aos 12 anos de idade tive a oportunidade de participar de um culto evangélico, na Igreja Metodista de Brazlândia – DF, onde tive minha experiência de conversão a Cristo. Nessa igreja, aprendi desde os fundamentos da fé cristã protestante até o exercício ministerial; o que significa dizer que fiz vários cursos de preparação para liderança eclesiástica. E, aos 16 anos passei a desenvolver vários trabalhos de liderança. Com 21 anos, pedi carta de transferência para a Igreja Assembleia de Deus, onde pude desenvolver trabalhos na área acadêmica teológica e conduzi uma congregação pequena por um período de um ano e meio.
Foi então que aconteceu algo que mudaria toda minha história de vida: Conheci Raphael Lira, que hoje é meu marido. Até então havia namorado algumas garotas com o fito de responder positivamente aos anseios das pessoas que me cercavam – estas pessoas desejavam por mim um casamento heterossexual. Ao conhecer Raphael, construímos uma relação de amizade (3 meses) que passeou para namoro (1 ano e 11 meses) e culminou em nosso casamento ( 7 anos).
Meu marido, na época namorado, apresentou-me a igreja inclusiva Comunidade Família Cristã Athos. Juntos cooperamos para o desenvolvimento da igreja, desenvolvendo trabalhos de liderança (eu: ministério da palavra e do ensino; ele: ministério da música). Cheguei a ser vice pastor da igreja, mas decidimos não dar continuidade, devido à incompatibilidade de ideais que começou a surgir. Ao sair da Comunidade Athos, fomos apresentados por um casal de amigas à Cidade de Refúgio, onde desenvolvemos um papel fundamental para a expansão da Igreja, abrindo a possibilidade de pastorearmos uma congregação CR em Brasília; algo que se concretizou, mas que não pode ter continuidade da nossa parte por motivos que vou relatar abaixo. Atualmente, pastoreamos a Igreja Metodista Reconciliadora IPEG, na cidade de Taguatinga – DF".
2. Você poderia explicar o que é uma bíblia comentada e quando foi que nasceu este desejo de escrever uma bíblia comentada? A mídia repercutiu sobre um possível contrato com a maior editora de bíblias, a Sociedade Bíblica do Brasil, em lançar este projeto e logo foi divulgado que não iria acontecer. O que realmente houve?
- "Uma Bíblia Comentada Consiste em inserir notas explicativas próximas aos textos bíblicos, a fim de o leitor entenda com clareza o que o texto bíblico significa. Por exemplo: ao ler a frase “viúva de Naim”, pode-se inferir que “Naim” foi o esposo desta mulher, que agora se encontra viúva, “viúva de Naim”, porém “Naim” não é um homem e sim uma localidade da época dos tempos bíblicos, então, uma nota explicativa esclarece isso, a fim de que o leitor não se confunda e use o texto erroneamente. Esse é o papel de uma Bíblia Comentada.
Logo que retornei ao Brasil (estive estudando no Japão), em uma conversa com meu esposo surgiu a ideia de contribuirmos com as igrejas inclusivas com algo que fosse substancial para a sua fé.
Em 2012, elaborei um projeto que versava sobre a produção de uma Bíblia Comentada e enviei em anexo ao formulário de pedido de uso de texto bíblico para a Sociedade Bíblica do Brasil – SBB. Neste projeto o nome da Bíblia era “Bíblia Cristão Homoafetivo”. A resposta foi negativa, mas ao mesmo tempo curiosa – fui pedido para reescrever o projeto e fazer algumas alterações; algo que providenciei e reenviei. O tempo de espera entre o primeiro pedido, ajustes até a assinatura do contrato foi de 2 anos. Em 2014, quando assinei o contrato com a SBB, guardei em sigilo, sabendo da responsabilidade que pesava sobre meus ombros e dos perigos que surgiriam, dentre eles: o surgimento de muitos gananciosos, já que se trata de um projeto inédito no Brasil.
De um lado eu: Teólogo, Professor versado em Japonês e Inglês, pastor Inclusivo e casado com um homem; do outro: Sociedade Bíblica do Brasil – SBB, instituição centenária, detentora das versões mais usadas no Brasil. O Contrato estava assinado e a produção da Bíblia começou. A parceria parecia perfeita.
3. Creio que é uma bíblia voltada a mostrar a aceitação de Deus aqueles que acham indignos e condenados pelos demais religiosos como o publico LGBT, estou correto? No entanto existem algumas igrejas tradicionais se posicionando contra este projeto seu e usando até versículos na Bíblia, para afirmarem estar corretos, como em Deuteronômio 12:32, 4:2; “Nada acrescentarás e nada tirarás da Lei”. O que você tem a dizer sobre isto?
Ressalto que elaborar uma Bíblia Comentada não significa adulterar textos bíblicos, mas explicá-los ou compartilhar um conhecimento específico sobre determinado texto, por isso, é totalmente infundada a ideia de que eu estaria produzindo textos diferentes das Sagradas Escrituras, adequando-os para uma linguagem própria dos homossexuais. Na verdade o trabalho de comentários bíblicos visa fomentar a discussão sobre os temas propostos para esta obra (inclusão eclesial dos homoafetivos, transexuais, espaço das mulheres no cristianismo, inclusão de pessoas com necessidade especiais, combate ao racismo), mostrando que há espaço para todos no reino de Deus, biblicamente falando e, que interpretações são interpretações, cada um pode ter a sua, mas precisamos acreditar em algo. É provável que para muitos as interpretações feitas e os ajustes textuais dos textos bíblicos não sejam aceitáveis, porém, muitos acreditarão e terão a vida e prática de fé pautada nisto. Um dos piores atos de desumanidade é privar as pessoas do direito de escolher o que querem para si".
4. Creio que há muitas mentiras dos religiosos sobre esta versão da bíblia comentada, você poderia nos dar um exemplo de um texto bíblico comentado que faça referencia a homo-afetividade? Sugestão: Levítico 20:13.
- "Veja como fica o texto de Levítico 20:13 na Bíblia Comentada Graça sobre Graça: “Da mesma forma, qualquer homem que se deitar com outro homem, como se esse fosse a sua mulher, fizeram abominação. Ambos devem ser mortos, e seu sangue cairá sobre eles”. Nota explicativa: o texto se refere a uma possível relação de adultério, pois relata um homem que tem mulher, ou seja: casado, e mesmo assim tem relações sexuais com outro homem, usando-o como passivo da relação. O adultério é totalmente condenável em qualquer relação pautada em votos de fidelidade, amor, companheirismo, cumplicidade e respeito".
5. Os ativistas gays alegam que o Apóstolo João, Apóstolo Paulo, o Rei Davi, Ester e Rute, e o próprio Jesus Cristo são às vezes retratados como homossexuais por teólogos gays. O seu projeto também traz esta visão sobre estes personagens bíblicos?
- "Absolutamente não. Estes personagens bíblicos são apresentados dentro de um padrão heteronormativo, respeitando a cultura dos hebreus. Não há relatos bíblicos que fundamentem substancialmente afirmações desse tipo".
6. Agora gostaria de focar o seu projeto dentro das Igrejas que aceitam gays, as ditas igrejas inclusivas. Um dos comentários que saiu da época é que o seu projeto da bíblia comentada foi divulgado quando você estava com Pastor na Igreja Cidade de Refugio, comentário maliciosos surgiram no meio que você usou a imagem da igreja para promover o projeto e que saiu após isto, o que você diria sobre?
- "Toda visibilidade em relação ao Projeto da Bíblia Comentada Graça sobre Graça se deve ao fato da matéria divulgada pela revista Veja Brasília (22/04/2015) sobre o meu contrato com a Sociedade Bíblica do Brasil – SBB; algo que motivou setores do meio evangélico a comprar uma briga com a SBB a fim de que o contrato fosse extinto. No meio evangélico, a divulgação se deu por meio de alguns portais evangélicos que apenas replicaram a matéria da revista Veja, acrescentando minhas referências pastorais. Como na época estávamos Pastoreando a Cidade de Refúgio de Brasília, usaram então o nome da Igreja. A repercussão do projeto foi tão grande, que se ouviu falar sobre cidade de Refúgio em países da África, Europa, América latina e pequenas cidades do Brasil e do mundo; ou seja, o projeto contribui para a imagem da Igreja Cidade de Refúgio.
No entanto, sempre tivemos o cuidado de mostrar para as pessoas que a Bíblia Comentada Graça sobre Graça nunca foi um projeto da Igreja Cidade de Refúgio, já que trabalhávamos nisso desde 2012. Um dos motivos de nosso desligamento da Cidade de Refúgio foi justamente não querer institucionalizar o Projeto da Bíblia GsG. Recebemos a proposta de fazer uma versão personalizada com o nome da Igreja Cidade de Refúgio no futuro, mas fomos constrangidos por nossa consciência a não falar mais sobre isso e realmente não tornar o projeto da Bíblia GsG um mecanismo de marketing. Certa feita, até ouvimos a seguinte frase: “uma igreja para duas mil pessoas e a Bíblia Comentada Graça sobre Graça, seremos uma explosão no mundo”. Tínhamos uma parceria que não deveria prosseguir, porque os prejuízos seriam imensuráveis.
Ademais, não via na época e até agora não vejo nenhuma igreja inclusiva que seja ou fosse melhor que a outra, sempre entendemos que todas desenvolvem um papel importante em nossa sociedade e todas estão em processo de estruturação. Entendemos que a soberba espiritual tem se tornado uma armadilha para muitos líderes. Agradeço a Deus pelo tempo que passamos na Cidade de Refúgio, aprendemos muitas coisas boas e conhecemos pessoas maravilhosas com quem ainda mantemos contato. Se realmente tivéssemos entrado na Cidade de Refúgio para ter holofotes, ainda estaríamos lá, já que a decisão de sair foi nossa".
7. Como surgiu o a Igreja Metodista Reconciliadora Incluídos pela Graça (IPEG), a qual o senhor é pastor e fundador? Creio que você deve ter passado por muitas experiências nesta caminhada o que levam muitos a crescerem espiritualmente e amadurecer nesta caminhada de fé, você tem algo a compartilhar conosco?
- "A Igreja Metodista Reconciliadora IPEG nasceu do nosso desejo de ter um lugar para congregar, receber as pessoas que necessitam ser ministradas pela Palavra de Deus e onde pudéssemos desenvolver o Projeto Graça sobre Graça e a Bíblia Comentada Graça sobre Graça em paz, livres de sentimentos malignos, situações estressantes e frenéticas. Pautamos nossos trabalhos ministeriais na proximidade com os membros, na lisura da administração eclesiástica, na legalidade perante Deus e os homens (andar dentro da lei) e no ensino bíblico como ferramenta para a cristianização da igreja, sendo regra de fé e prática de cada pessoa que deseja congregar aqui.
Temos intenção de estender as nossas tendas e crescer mais e mais, mas queremos fazer isso de maneira saudável e dentro do propósito que Deus tem para nós. Nossos lemas são:
1. Menos entretenimento e mais Jesus;
2. Pastor tem que gostar do cheiro de ovelhas;
3. A simplicidade é resultado de cura na alma;
4. A santidade é devida a todos os que chamam Deus de pai;
5. Enquanto AS MINHAS LUTAS forem AS MINHAS LUTAS, lutarei sozinho. QUANDO ELAS FOREM DO SENHOR, NÃO TEREI DE GUERREAR;
6. “O corpo e a alma compõe o homem; o espírito e a disciplina é que fazem um verdadeiro cristão”;
7. A oração, a leitura da palavra e a comunhão com os irmãos consolidam minha fé;
8. Fé, justiça e misericórdia: são virtudes que não posso esquecer de desenvolver;
9. A graça divina é Simplesmente Inclusiva;
10. Mais importante que saber explicar o que a Bíblia diz sobre mim é saber qual é o próximo passo a ser dado.
8. Você tem sofrido algum preconceito velado no meio das Igrejas Inclusivas ou tem recebido bastante apoio? Que mensagem você deixa para reflexão aos membros de igrejas inclusivas?
- "Temos recebido muitas mensagens de apoio por parte de igrejas inclusivas do Brasil e do mundo. Mas ainda esbarramos em alguns entraves no que tange a aceitação do Bíblia Comentada Graça sobre Graça como um projeto universal que visa beneficiar a todas as pessoas. Sentimos resistência em alguns líderes de igrejas inclusivas em anunciar o projeto em suas igrejas ou redes sociais.
Termino com a seguinte frase para sua reflexão:
“Não basta apenas estar vivo, precisamos tirar as ataduras da morte; caso contrário, estaremos vivos, mas não seremos livres” – Lázaro ressuscitou, mas ainda estava envolto pelas ataduras da morte, por isso Jesus disse: “Desatai-o e deixai-o ir” (João 11:44)
Estejamos vivos e sejamos livres!"
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