Separando o joio do trigo: o que representa (e o que não representa) a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos de Estrasburgo para a existência (ou não) do direito ao casamento homoafetivo.
Por Nerrian Possamai (Diácono da Comunidade Cristã IPEG)
Em Helsinki, a capital da Finlândia, país escandinavo europeu, habita um
cidadão cujo sobrenome é Hämäläinen, de 54 anos. Ele é formado em ciências
econômicas e trabalha como oficial de alfândega. Casou-se com sua esposa em
1996 e ambos tiveram uma filha em 2002, tudo dentro dos sacramentos religiosos
da Igreja Evangélica Luterana, profissão de fé que seguem e vivenciam
fervorosamente.
Em 2004, o casal procurou ajuda de profissionais de saúde e psicologia
para ajudar ao marido quanto à sua “identidade de gênero dissonante”. Após um
tratamento psicológico bem sucedido, a esposa compreendeu que estava casada com
alguém que se entendia também como mulher. Em junho daquele ano, Hämäläinen
escolheu para si o nome de “Heli”, mas não lhe foi permitido proceder ao seu
registro civil como mulher. Isso ocorreu porque Heli é casada com outra mulher
e, segundo a lei finlandesa, esse casamento seria invalidado se Heli fosse
reconhecida como mulher. Em setembro de 2009, submeteu-se à cirurgia de
realinhamento de gênero, tornando-se fisicamente uma mulher, o que estava em
harmonia com a sua psiquê. Após sua
cirurgia, devido ao fato de o casamento homossexual não ser legalizado na
Finlândia, às duas foram dadas duas opções: ou elas deveriam se divorciar, ou
converter o seu casamento em união estável. Apenas assim Heli poderia possuir o
registro civil reconhecendo seu gênero feminino.
Insatisfeitas com a intransigência jurídica de seu país, as esposas
ajuizaram ação perante o ordenamento jurídico finlandês e, em seguida, perante
o Tribunal Europeu de Direitos Humanos sediado em Estrasburgo, na França.
Segundo as autoras da ação, a lei finlandesa impedia-lhes de fruir de direitos
básicos assegurados pelo país a casais heteronormativos, tais como o direito à
privacidade e à constituição familiar, o direito de se casar e a proibição da
discriminação.
Elas perderam seu caso em todas as instâncias jurídicas na Finlândia até
a Suprema Corte. Além disso, o Tribunal de Direitos Humanos de Estraburgo
rejeitou unanimemente o seu pedido. Essa rejeição causou grande comoção entre
grupos de ativistas que comumente se enfrentam: de um lado, os fundamentalistas
religiosos “cristãos” (em sua grande maioria, “católicos” e “evangélicos”), os
quais se opõem ao reconhecimento jurídico do casamento homoafetivo; de outro
lado, os ativistas LGBT, que militam pelo reconhecimento dos seus direitos
civis e pela criminalização de tratamentos discriminatórios, homofóbicos, lesbofóbicos
ou transfóbicos.
A questão é especialmente espinhosa, pois vivemos em uma época de
conhecimento e reconhecimento de direitos. Essa pretensa oposição entre
religiosos e LGBTs é falaciosa, uma vez que muitas pessoas no mundo inteiro se
reconhecem e se identificam como homoafetivas e religiosas. Se essas duas
questões podem coexistir em uma mesma pessoa, certamente devem poder coexistir
também no mundo e na sociedade.
É exatamente esse o caso de Heli e sua esposa: ambas são evangélicas
luteranas, as quais, por terem vivido por anos como casadas, entendem que a
“redução” forçada (por falta de melhor termo) do seu casamento para uma união
estável iria degradar o sacramento dos seus votos de casamento.
Em julho de 2014, a Corte Europeia de Direitos Humanos proferiu a
seguinte sentença para este caso:
“A Corte entende que é razoável que a
Finlândia requeira a conversão do casamento para união estável como
pré-requisito para o reconhecimento jurídico do realinhamento de gênero de uma
das cônjuges, uma vez que se trata de uma alternativa jurídica válida, a qual
provê proteção jurídica para casais homoafetivos em termos quase idênticos àqueles
decorrentes da instituição do casamento. As pequenas diferenças existentes
entre os dois institutos (união estável e casamento) não são suficientes para
que julguemos que o ordenamento jurídico finlandês esteja descumprindo seus
deveres perante seus cidadãos relativos ao Artigo 8 (direito à intimidade e à
constituição familiar). Ademais, a conversão do casamento em união estável não
afetaria a vida familiar da autora da ação, uma vez que os seus direitos
paternos em relação à sua filha, tanto quanto as suas responsabilidades de
cuidado, guarda e sustento da criança também mantêm-se preservados”.
Essa sentença judicial foi veiculada por muitos veículos midiáticos,
especialmente na Europa, como sendo “uma vitória para os religiosos” e “um
revés irreparável para o reconhecimento dos direitos dos LGBTs”. Além disso,
aventou-se que a Corte teria, dessa forma, se posicionado no sentido de que “o
casamento homoafetivo não era um direito”. Nada disso condiz com a verdade, e
tais mentiras foram disseminadas como propaganda de ódio e intolerância contra
grupos minoritários.
Na verdade, é preciso separar o joio do trigo: primeiramente, separando
os aspectos jurídicos daqueles religiosos envolvidos na questão. Comecemos nos
debruçando sobre a questão plenamente jurídica: por mais óbvio que possa
parecer, a Corte Europeia de Direitos Humanos é um tribunal cuja atuação se
verifica apenas no tocante a direitos humanos (e não direitos civis no sentido
tradicional do termo) e sua competência é para legislar somente na Europa.
Dessa forma, se o(a) leitor(a) está preocupado(a) com a possível repercussão
desse julgado no Brasil, retirando direitos conquistados no País, uma outra
obviedade deve ser evidenciada: o Brasil não se localiza na Europa. Portanto,
nenhuma sentença prolatada por aquela Corte tem qualquer efeito jurídico no
Brasil.
Além disso, o que a Corte Europeia de Direitos Humanos negou na sentença
supracitada foi a obrigatoriedade de
todos os países da União Europeia (neste caso concreto, especialmente da
Finlândia) de legislarem de modo a criar a figura jurídica do casamento
homoafetivo em suas jurisdições nacionais. Dessa forma, pode-se
entender que a Corte não entendeu que o direito ao casamento homoafetivo seja
um direito humano, mas nunca disse que não se trata de um direito, ou que seja
um direito inválido ou nulo! Parece confuso? É um pouco difícil mesmo para os
que não são da área do Direito, mas não é nada que não possa ser melhor
esclarecido.
Um direito humano é aquele que tem, teoricamente, reconhecimento
universal, ou seja, de todos os países: trata-se de questões tão importantes
para o ser humano que não poder frui-los seria negar-lhes a própria dignidade.
Esses direitos são, por exemplo, direito à água, à alimentação variada e
equilibrada, à moradia adequada, a votar, a estudar, a trabalhar, a constituir
família, entre outros. No Brasil, a maioria dos direitos humanos são
reconhecidos pela Constituição Federal (pois outros podem ser assumidos por
meio da assinatura de tratados internacionais de direitos humanos) e, no âmbito
legislativo interno, são rebatizados como “direitos e garantias fundamentais”.
Se tiver oportunidade, leia o Artigo 5° da CF/88, para ter uma ideia do que ora
se está falando.
O “problema” em uma Corte como a Corte Europeia de Direitos Humanos
reconhecer algum direito como direito humano seria que, a partir dali, esse tal
direito ganharia força cogente, ou seja, poder-se-ia cobrar a obrigatoriedade
da defesa desse direito de todos os atores subordinados à Corte. Foi isso que
aquela Corte se recusou a fazer: ao não reconhecer o direito ao casamento
homoafetivo como direito humano, a Corte não obrigou nenhum dos 47 países
constituintes da União Europeia a legislar internamente, forçando-os a engolir
forçosamente a figura do casamento homoafetivo. Contudo, de forma alguma esse
não-reconhecimento implica em dizer que o casamento homoafetivo não seja um
direito, ou que os 10 países dos 47 que já possuem legislação que permite o
casamento homoafetivo devam refazer as suas leis: nem uma coisa, nem a outra.
A Corte preocupou-se em manter uma parcela importante da soberania dos
Estados europeus sob a sua jurisdição, permitindo-lhes resolver internamente
esta questão. Em um momento de grandes conflitos internos na União Europeia
desde o advento inédito da saída de um País Membro (a saída do Reino Unido do
bloco, apelidada de “Brexit”), a Corte tem percebido que o seu papel deve ser
menos incisivo, intransigente e mais conciliador e aberto ao diálogo. No fundo,
era a própria sobrevivência do bloco que estava em jogo: se o bloco se
dissolvesse por causa da questão ali debatida, a própria autoridade da Corte se
esvairia, resultando na perda de um processo civilizatório, jurídico e político
inédito e bem-sucedido na História Contemporânea da humanidade (a constituição
da União Europeia).
Por outro lado, do ponto de vista jurídico, o direito das esposas, no
caso concreto em tela, está assegurado com a figura da união estável, que é uma
forma válida de constituição familiar. A preocupação jurídica sempre será a de
não desamparar às pessoas, relegando-as à própria sorte e aos revezes de viver
sem ter o mínimo de direitos e garantias fundamentais inerentes à plena fruição
de sua humanidade e dignidade. Assim, a Corte entendeu que elas não tinham
causa de pedir, rejeitando a sua petição, uma vez que o ordenamento jurídico da
Finlândia lhes oferecia opções para manterem a validade jurídica de sua
relação, além de oferecer a Heli alternativas para que o seu gênero fosse
legalmente reconhecido.
Durante o processo, as autoras da ação argumentaram que, de um ponto de
vista religioso, os seus votos matrimoniais seriam denegridos com a conversão
civil de seu casamento em união estável. Isso já não é dever do Estado, ou de
qualquer Corte! As questões religiosas são de competência única e exclusiva das
igrejas! O dever da Finlândia ou da Corte Europeia de Direitos Humanos era
garantir seus direitos fundamentais, o que foi plenamente concedido. Se as
peticionantes se sentem dessa forma em relação à sacralidade ou à profanação de
seus votos matrimoniais, devem se dirigir à única autoridade competente para
lidar com a questão: o pastor responsável por elas na Congregação Evangélica
Luterana da qual fazem parte.
Não se deve confundir casamento civil com casamento religioso, pois um
pode existir perfeitamente sem o outro, ou podem também ambos coexistirem. De
qualquer modo, a existência de um e a inexistência do outro não implica nem na
nulidade de um, nem na profanação do outro. Do ponto de vista religioso, “não
separe, pois, o homem o que Deus uniu” (Marcos 10:9). Para Deus, qual seria o
problema em uma pessoa que nasceu homem e decidiu fazer a cirurgia de
realinhamento de gênero tornar-se uma mulher? Deus, porventura, não amaria essa
criatura com o mesmo amor, pela sua essência? Porque, então, haveria o Senhor
de considerar impuro o casamento que havia abençoado anteriormente? Essa visão
tacanha é obra dos homens (e, por que não dizer, do inimigo?), pois o Deus de
Israel “não faz acepção de pessoas” (Atos 10:34).
Os desígnios do Pai são perfeitos. Ele certamente não perderia Seu tempo
sagrado com esse tipo de futilidades, que são afeitas à natureza humana. Por
outro lado, a lei humana é evidentemente imperfeita: trata-se do jogo do
possível, dado um momento histórico. Como diz Isaías 64:9: “Mas todos nós somos
como o imundo, e todas as nossas justiças (são) como trapo da imundícia”.
Neste momento histórico, tudo o que a Corte Europeia de Direitos Humanos
pôde fazer foi pensar na própria sobrevivência, contentando-se em prolatar uma
sentença mesquinha e desanimadoramente limitada em sua humanidade. Segundo
Eclesiastes 3:1, “tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o
propósito debaixo do céu”. Certamente há de chegar um tempo no qual todas as
nações reconhecerão plenamente os direitos dos LGBTs, mas Deus não está
limitado, de forma alguma, pelo fato de essas nações atualmente não terem esse
entendimento. Deus nos ama a todos,
abençoa e quer bem a todos os LGBTs, prometendo-lhes salvação e vida eterna de
forma graciosa, não lhes impondo qualquer espécie de reforma da própria
natureza ou de “cura gay”, pois o Senhor os ama como são! Se assim não
fosse, não os teria criado da forma perfeita
que os criou.
Quando certos grupos que se determinam “religiosos” se libertarem do
ódio contra os seus irmãos LGBTs, esses grupos passarão a viver a graça que é
presente de Deus, deixando de ser fundamentalistas enfurecidos e passando a ser
aquilo que ainda não conseguem ser: verdadeira e essencialmente cristãos.
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